domingo, 28 de junho de 2020

NÃO HÁ MÃOS


Não há mãos quando a morte sobrevém.
a palavra, o esqueleto da linguagem
ganha formas bizarras no caminho
da vida carpideira, com a imagem
do sol inatingível cocegando
o rosto que da sombra tira luz
bebendo a parca sede que lhe resta
do fio de água que já não conduz.
na escuridão da fala não há nomes
nem há figura de estilo que valha
que sobreviva a tanta quietude.
é que morte é simplesmente morte.
até de um corpo belo de desejo
não ná mais do que ter esta atitude
se é luz ou se é a sombra dela


José Félix, Teoria do Esquecimento, Temas Originais, Lda., 2009, pág. 37

domingo, 21 de junho de 2020

PÉROLA NEGRA


Não sei explicar este enigma!
Os outros dizem que é feia.
E eu concordo,
Sou forçado a concordar
Porque ela, é mesmo feia.
Mas!...Paradoxo!
Encontro nela uma beleza singular,
Talvez na forma de rir,
Talvez na forma de olhar,
Talvez!
Sim, talvez porque ao rir,
Não utiliza a hipocrisia,
E não sufoca a gargalhada,
Ri sem fantasia
De qualquer coisa engraçada,
E comunica alegria
Aos outros,
Como ela, malfadados.

Chama-se ROSA!
E a ROSA tem de humano,
A posição vertical.
O resto...
O resto
É de animal irracional.
Não tem ódio no olhar,
Nem rancor pelos tiranos;
Ambições também não tem,
Que a vida
Sempre lhe deu desenganos,
E ela deixou de ambicionar.

Um dia vi-a chorar!
Um soldado lhe batera,
E ela para mim correra a gritar...
- Raimundo! - Raimundo!
- Os tropa me bateu,
- Os tropa me bateu, Raimundo!

- Ah! porco imundo!
- Rosnei eu.
Heróis da podridão,
Vejam...
Um valentão.

Passei-lhe uma das mãos
Pela face tremente,
Duas pérolas rolavam lentamente
Pela face da negrita,
E naquele momento...
Naquele momento,
Achei-a ainda mais bonita.

Não chores Rosita,
Disse eu.
E ela deixou de chorar.
E uma lágrima quente
Veio-se aconchegar,
Na minha outra mão,
Que pendia, inconsciente.
- Os tropa me bateu!
Disse ela novamente.
- O tropa é mau!
Disse eu.
E calei-me
Sem saber que dizer mais.
Aquela é uma rosa
Que não se encontra nos rosais!
Pétalas negras,
Pistilo de marfim,
E dois estigmas dardejantes de pureza,
Que beleza!
Nunca vi outra assim.

De ambos os lados
Tinha um botão a abrir,
Eram os filhos
A olhar para mim!
O Jorge e a Amelonga,
Dois rebentos da desgraça,
Que nasceram para sofrer,
E para provar ao mundo
Que viver,
É uma infinita graça ,
É um supremo poder.

No ventre,
Tinham a marca do pirão,
Farináceo que dilata os intestinos;
No rosto,
Um sorriso de gratidão,
Pela minha compreensão.
Só eu,
Ao que parece,
Compreendia os seus destinos.
Os outros
Viam na Rosa
A carne satisfeita.
Faziam dela a prostituta eleita,
E depois partiam, sem mais contemplações.
E ela,
A máquina humana do prazer,
Satisfazia machões,
Para alimentar os filhos,
Para os não deixar morrer


Filipe Raimundo, AB4, 1971.

domingo, 14 de junho de 2020

AFETIVIDADE


A todos os amigos.- Porque nas circunstâncias actuais, não posso abraçar. ❤️
--//--
Afetividade
Eu sou entendimento e sou vontade,
Sou corpo, sou paixão e também dor;
Sou alegria, coração e amor,
Sou presente, futuro e também saudade.

Floresce dentro em mim essa amizade,
Como na Primavera a bela flor
Espalhando nos campos seu olor,
Feita de abraço e feita de verdade.
E da férrea vontade do meu ser,
Com força de mistério e sem eu ver,
Emerge o afecto mágico e profundo.
E através dele eu entro em relação
Comigo, com outro – meu irmão –
E mesmo com as formas deste mundo.


Jc
In: espelho de poesia

domingo, 7 de junho de 2020

TODAS AS COISAS


Sentado ao fim da tarde, vendo o sol esmorecer,
A despedir-se de mim num acenar sorridente,
Colorindo com mil cores o céu do entardecer,
Prometendo calma a noite, suave aconchego quente.


E reservo esta noite, é meu desejo sereno,
Uma noite solitária, bem na paz do meu viver,
Sem cuidar de vãs promessas, sem esperar um aceno,
Preparando um novo dia, fazendo o que há a fazer.


E recordo outros momentos, ecos vindos do passado,
Outros sonhos e desejos, tanta ilusão perdida...
Quando nada se ganhou em trabalho esforçado,
Mas é de pequenos nadas que é feita esta vida.


Não venci grandes batalhas, como um audaz general,
Mas não semeei a morte em duvidosas vitórias,
Nem lutei de forma vã, confundindo o bem e o mal,
Quando tanto horror se esconde em ilusórias glórias.


Todas as coisas na vida podem ter razão de ser,
Mas muito do que pensamos não passa de ilusão,
Errado é passar a vida a pensar sem a viver,
Tudo passa nesta vida, com razão ou sem razão.


(Miguel Pimenta, 2018)