sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

CAIS - por José Felix


cais

com quantas pedras se constrói um cais
para que me sossegue a alma e sinta
que chego à casa pronta para a paciência
dos dias que sobejam do futuro

com quantas pedras se constrói uma cidade
com casas dentro e gente que me fale
a língua do meu ventre mãe, e diga
que esse lugar nasceu para que eu escreva

além da geografia desenhada
nos mapas da vida vadiagem
o sangue que me ria pelo tempo.

buscasse eu a memória com a mesma
limpidez com que escrevo o silêncio dos lábios
faria da palavras um cais de remanso

ou outro romance da imaginação.

Jose Felix

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

CICLO INEXISTENTE por Filipe Raimundo


CICLO INEXISTENTE

Se a cada borrasca
Se segue uma acalmia.

Se às trevas de cada noite
Se segue a luz de um novo dia.

Se tudo é
Tão ciclicamente certo
Nesta Terra;

Porque razão a paz não vem
E só existe a guerra?

Henrique de Carvalho - 20/07/1972


Filipe Raimundo

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

CARTA AO PAI NATAL - Por José Felix



carta ao pai natal

senhor pai natal   eu sei
que és um anjo de deus nosso senhor
 e como mensageiro do céu    como diz
o meu amigo que mora na torre em frente
à minha barraca da favela onde vivo
 quero pedir-te que transmitas lá no céu
 como vou passar o natal com a minha mãe.

tenho dez anos e nunca tive um brinquedo
 a não ser de aqueles que nós fazemos com
arame   carros com rodas e tudo e volante .
desde que cheguei de cabo verde que moro aqui
nesta casa de madeira sem luz   sem água
e só a lua acende as ruas estreitas    tão estreitas
que chego a bater nas casas com os cotovelos.

 nunca fui à escola e não sei ler nem escrever
por isso pedi ao meu amigo menino para fazer
uma carta. é tão estranho    a caneta dele desliza
sinais no papel das coisas que eu digo   que é
difícil acreditar que as minhas palavras ali estão.

 às vezes espreito pela grade da escola que fica
ali perto e vou ver os meninos no recreio    a brincar
quando a minha mãe diz para ir comprar pão
no senhor inácio porque o dinheiro eu conheço
dez   vinte   cinquenta   as moedas e as notas.

senhor pai natal   eu só queria   olha   já disse
que não quero brinquedos    não me importo
mas diz a deus para dar um homem à minha mãe
ela queixa-se muito   passa a vida a dizer que
a casa precisa é de um homem   principalmente
quando o meu irmão de dezoito se pica nos braço
se fica para ali parece um morto mas quando acorda
começa a partir as coisas que restam    por isso
é que nós não temos prateleiras para pôr as panelas
fica tudo no chão   a monte. há dias deitou abaixo
a porta da casa e dormimos toda a noite com os cães
da rua a entrar e a sair. eu quase não dormi porque tive
de enxotar os cães que iam lamber as perna
sao meu irmão e à minha mãe. foi engraçado.

 ah   sabes   neste bairro que não é bairro
não vem a camioneta buscar o lixo
o carro que vem é a carroça dos cães   para os levar
não fazem mal a ninguém mas eles dizem que são vadios
os cães têm dono mas eles não querem saber
e dizem que são nossos amigos    os cães.
vem também um senhor padre dizer
para irmos à missa rezar e obedecer a deus
mas a minha mãe e eu não temos tempo   é preciso
ir buscar água a uma torneira que uma senhora pôs
no quintal para a gente . é quando
vou à água que eu vou brincar para a lixeira
e às vezes trago uma lanterna velha   um secador
que trabalha mas a minha mãe não precisa dele
porque tem o cabelo curto e é carapinha.

ainda há outra coisa que eu queria pedir-te
diz a ele   ao deus   e se ele se lembrar   por causa
dos polícias que aparecem aqui todas as noites
é só para eles não aparecerem no dia de natal
e porque a minha mãe quando os vê fica doente
porque eles mataram o meu pai que fugiu com medo
e eles deram-lhe um tiro nas costas.

já não sei o que tenho mais para dizer
era tanta coisa mas o meu amigo que mora na torre
diz-me para não escrever muito porque assim
o senhor pai natal não tem tempo para ler todas as cartas
que os meninos   os que podem   enviam.

 vou dizer ao meu amigo para ler em voz alta
para saber se ele não se esqueceu de alguma coisa
até porque a minha mãe está a chamar-me para
pôr uma bacia a apanhar a água que está a cair
em cima da cama. está a chover muito e é sempre
assim   é quando a mãe canta «sodade di nha crecheu»

agora lembrei-me   tu que és o pai natal
o mensageiro de deus e portanto sabes onde
está tudo porque vais dar as prendas a toda a gente
quando passares por cima da minha casa com o teu
carro de madeira puxado por aqueles animais que têm cornos
e parecem árvores   no dia de natal faz-me só um sinal
um sinal só para mim     só para mim.
e não te esqueças    lembra-te da minha mãe. 

José Félix