Os homens são seres de vida breve
in Odisseia de Homero
1.
na morte
presente e iluminada
atravessando o corpo, beijando a noite, fugindo
se sente a aurora no crepúsculo
da flor.
2.
tenho o vestígio da morte no corpo
a doença marítima de um búzio
que perde o grito silencioso quase
a sonolência longa de um sono breve
tenho o vestígio da morte no corpo
a doença marítima de um búzio
que perde o grito silencioso quase
a sonolência longa de um sono breve
nos caminhos da areia rarefeita.
o vento de água cura a ferida aberta
e na contemplação das plantas vivas
mais viva é a morte passageira.
o vento de água cura a ferida aberta
e na contemplação das plantas vivas
mais viva é a morte passageira.
um gesto branco nos lábios de inocência.
3.
na areia da praia encontramos tudo
um brinquedo esquecido
pegadas de gaivotas
um adeus desenhado no coração
na areia da praia encontramos tudo
um brinquedo esquecido
pegadas de gaivotas
um adeus desenhado no coração
um bom-dia imprevisto quando estamos sós
e as espinhas dos peixes limpas pela água
e as espinhas dos peixes limpas pela água
o eco da voz vai com as ondas
que limpam já os passos inseguros
doutro caminho iluminado e breve
frágil no pó dos ossos incendiados
que limpam já os passos inseguros
doutro caminho iluminado e breve
frágil no pó dos ossos incendiados
todo o fogo se consome a si próprio.
4.
num simples verso vai, na morte, a vida.
num simples verso vai, na morte, a vida.
5.
restam o caos e o sonho
e na cegueira da luz
uma fonte incendiada
grava o último reflexo
da infância de um sorriso.
restam o caos e o sonho
e na cegueira da luz
uma fonte incendiada
grava o último reflexo
da infância de um sorriso.
6.
nos ossos da manhã
há vestígios da carne madrugada
no quarto de hotel de 3ª classe.
nos ossos da manhã
há vestígios da carne madrugada
no quarto de hotel de 3ª classe.
o cheiro forte do gin tónico
conta os dias como um relógio velho
do qual sabemos a tonalidade
conta os dias como um relógio velho
do qual sabemos a tonalidade
no compasso das horas.
é nos lençóis de esperma ressequido
que a vida fácil torce o coração
na clepsidra diária do pó
é nos lençóis de esperma ressequido
que a vida fácil torce o coração
na clepsidra diária do pó
que dificulta na passagem clara e estreita
uma corrente de luz fina
que segura no grito temperado
uma voz frágil que surge do medo.
uma corrente de luz fina
que segura no grito temperado
uma voz frágil que surge do medo.
7.
há princípios de ausência
no teu rosto
e dos ossos só resta a quietude
da espera convertida
há princípios de ausência
no teu rosto
e dos ossos só resta a quietude
da espera convertida
na vertigem dos dias.
desenha-se
a última alegria límpida e lúcida
no vôo de uma pomba.
desenha-se
a última alegria límpida e lúcida
no vôo de uma pomba.
é pacífica a morte
quando te beija o corpo quente e dado
aos fantasmas do sonho.
quando te beija o corpo quente e dado
aos fantasmas do sonho.
quanto mais sobe a vida na montanha
mais escarpas e sulcos de gangrena
se vão formando em direcção ao pó.
mais escarpas e sulcos de gangrena
se vão formando em direcção ao pó.
8.
nesta raiz apodrecida e frágil
há ecos há vozes no encantamento
dos pássaros feridos pelo tempo
nesta raiz apodrecida e frágil
há ecos há vozes no encantamento
dos pássaros feridos pelo tempo
uma lua adormecida engravida
a luz que pasma detrás do casario
a luz que pasma detrás do casario
há árvores que resplandecem
quando a morte lhes gangrena o tronco.
quando a morte lhes gangrena o tronco.
9.
nasce morta a manhã
nos escombros das casas e das árvores.
o último sorriso jovem escurece
a rua metralhada por deus.
nasce morta a manhã
nos escombros das casas e das árvores.
o último sorriso jovem escurece
a rua metralhada por deus.
as pombas rodeiam os ossos da cidade
enquanto os corvos comem restos
de humanidade.
enquanto os corvos comem restos
de humanidade.
10.
dobra o pecíolo na ventania
e a folha
na nervura do tempo cai no fio de água
deixando esporos na margem da sede
na penumbra.
dobra o pecíolo na ventania
e a folha
na nervura do tempo cai no fio de água
deixando esporos na margem da sede
na penumbra.
josé félix