sexta-feira, 27 de junho de 2014

Os homens são seres de vida breve

in Odisseia de Homero


1.

na morte
presente e iluminada
atravessando o corpo, beijando a noite, fugindo
se sente a aurora no crepúsculo
da flor.

2.
tenho o vestígio da morte no corpo
a doença marítima de um búzio
que perde o grito silencioso quase
a sonolência longa de um sono breve
nos caminhos da areia rarefeita.
o vento de água cura a ferida aberta
e na contemplação das plantas vivas
mais viva é a morte passageira.
um gesto branco nos lábios de inocência.
3.
na areia da praia encontramos tudo
um brinquedo esquecido
pegadas de gaivotas
um adeus desenhado no coração
um bom-dia imprevisto quando estamos sós
e as espinhas dos peixes limpas pela água
o eco da voz vai com as ondas
que limpam já os passos inseguros
doutro caminho iluminado e breve
frágil no pó dos ossos incendiados
todo o fogo se consome a si próprio.
4.
num simples verso vai, na morte, a vida.
5.
restam o caos e o sonho
e na cegueira da luz
uma fonte incendiada
grava o último reflexo
da infância de um sorriso.
6.
nos ossos da manhã
há vestígios da carne madrugada
no quarto de hotel de 3ª classe.
o cheiro forte do gin tónico
conta os dias como um relógio velho
do qual sabemos a tonalidade
no compasso das horas.
é nos lençóis de esperma ressequido
que a vida fácil torce o coração
na clepsidra diária do pó
que dificulta na passagem clara e estreita
uma corrente de luz fina
que segura no grito temperado
uma voz frágil que surge do medo.
7.
há princípios de ausência
no teu rosto
e dos ossos só resta a quietude
da espera convertida
na vertigem dos dias.
desenha-se
a última alegria límpida e lúcida
no vôo de uma pomba.
é pacífica a morte
quando te beija o corpo quente e dado
aos fantasmas do sonho.
quanto mais sobe a vida na montanha
mais escarpas e sulcos de gangrena
se vão formando em direcção ao pó.
8.
nesta raiz apodrecida e frágil
há ecos há vozes no encantamento
dos pássaros feridos pelo tempo
uma lua adormecida engravida
a luz que pasma detrás do casario
há árvores que resplandecem
quando a morte lhes gangrena o tronco.
9.
nasce morta a manhã
nos escombros das casas e das árvores.
o último sorriso jovem escurece
a rua metralhada por deus.
as pombas rodeiam os ossos da cidade
enquanto os corvos comem restos
de humanidade.
10.
dobra o pecíolo na ventania
e a folha
na nervura do tempo cai no fio de água
deixando esporos na margem da sede
na penumbra.

josé félix

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