domingo, 17 de novembro de 2019

A OUTRA JANELA


não sei porque pertenço a esta janela
talvez seja a distância da qual me acoberto
que faz olhar de soslaio
o movimento lá fora. se lá fora é estar para lá da janela
ou se é estar para cá dos cotovelos que descansam
na pose entretida e sobranceira
a ver o mundo, pequeno ou grande, sei lá
e a minha sombra a brincar com o cão
do outro lado do sol.

tenho a erva fresca na boca e um sentido canino apurado
que deseja a carícia no pêlo, ladrar, fornicar
e sem a pose de cão tecer impropérios
cavar com as mãos, com os pés, com as patas, com os dentes
com o focinho. lamber, lamber-me até que a pureza
fique nos píncaros.
eu sei que esta janela tem todo o sentido.
faz-me olhar mais para o outro, vendo-me.
não é um jogo de cabra-cega onde tocamos uns nos outros
sem sabermos quem somos.
é o espelho que me entra pela casa com o meu reflexo.
com os meus reflexos complexos
com a dislexia dos sacanas visíveis e invisíveis.
a janela. é dela que eu sou não sendo. é o meu palco
de marionetas que movimento no estrondo da gargalhada
é a minha ópera bufa. os bobos. ah os bobos.
são todos bobos desta corte de reizinhos, cortesãos e cortesãs
onde a intriga se move debaixo dos saiotes
no olhar lúbrico, lascivo dos decotes.
tenho a minha janela. só para mim. é daí que movimento
os lábios dos biltres, dos que querem subir na vida
dos ladrões, dos que se deixam roubar e dos que não deixam.
é dali que eu aplauso, apupo, assobio, escancaro a boca
ao tédio até à próxima representação.
a janela. a minha janela sem violetas
ri-se da esquerda e dos seus complexos, ri-se
da direita e das falsas virtudes
ri-se da política melodramática, ri-se
dos cidadãos inconformados
ri-se dos senhores deputados, ri-se
dos ministros e secretários de conveniência
ri-se dos mendigos, donos de empresas, ri-se
dos desempregados, dos operários, dos fumadores de crack
ri-se das putas de covil e de bacharel, ri-se
do sistema e do anti-sistema.
a minha janela é a fotografia na imaginação da pose
na indignação da posse, na violência
da verdade mentida até à exaustão.
a minha janela é a minha janela.
é a minha particular conveniência
sem truques, sem retoques de pintura
é a visão límpida das coisas.
a minha janela é a minha janela.


josé félix

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