domingo, 31 de maio de 2020

DA VIAGEM


Eu quero ir viver para mariposa
plantar um canavial e um jardim na popa
e inundar-me de água do rio Leie.
Goedmorgen, mijn naam is Félix
quando vier o correio de longe
e trouxer notícias do país das caravelas
não pensar nos bolinhos de bacalhau
e, por simpatia, desenhar numa
folha de papel a Torre de Belém
depois, nos dias azedos
quando a saudade marítima
pintar o rosto, transformo a folha de papel
com a Torre de Belém, faço um barco
e deito-o, com displicência
nas águas turvas do Leie
até que um pato bravo o afunde.
Vou para Graslei. É lá que identifico
a minha errância nas casas miudinhas.
Cego de arquitectura, compro
uma grade de cerveja Jupiler
e só ou com amigos de circunstância
que o pouco conhecimento da língua permite
bebo a olhar a água turva do rio
quando a duplicidade da imagem da torre
da igreja de Sínt Baaf me cansa.
Eu quero ir viver para mariposa
e, no silêncio da noite
ouvir grasnar os patos bravos
em cima de um bote meio afundado.
ao lado, na Rua Visserig, o contador de bicicletas
azula à passagem do ciclista.
-/-
Um corvo sossega a tarde em Sint Jacob
e nós abraçados um no outro admiramos
a arquitectura das paredes medievais
ao longo do rio Shelbe.
Centenas de passeantes olham para cima
Com a ausência de Deus que há muito tempo
deixou de honorar centenas de viajantes
que se recolhem ali.
Olhares vagos e indiferentes compram
chocolates e waffles para memória futura
ou para oferecer aos amigos no regresso da viagem.
O corvo, em Sint Jacob, mudou de árvore
e continua a sossegar a tarde soalheira
quando passam dezenas de escoteiros
numa algazarra adolescente.
Nós abraçamo-nos e tecemos
Comentários de circunstância
abafados pelo trote dos cavalos do coche.

José Félix, Antologia de Escritas, N.10, Marco de 2013

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